14 de março de 2012

Aula 2 - continuação


O Processo de Produção de Textos
Márcia Fortunato


O modelo resultante da pesquisa realizada por Flower e Hayes (1981)[1] acolhe os principais processos de pensamento que ocorrem durante a realização das tarefas de produção de textos dos escritores, mas não determina uma sequência específica em que eles ocorrem, uma vez que os escritores realizam cada parte do processo de forma integrada às demais, numa dinâmica dirigida pelo escritor de modo singular, em resposta ao problema retórico que tem a resolver.    





O ato de escrita envolve três elementos principais, que estão representados nas três unidades do modelo: o contexto de produção, a memória de longo prazo do escritor e os processos de escrita. O contexto de produção inclui tudo o que está fora do escritor: o problema retórico ou tarefa atribuída e o texto em gestação. A memória de longo prazo envolve o conhecimento armazenado não somente sobre o tópico (conteúdo semântico), mas sobre a audiência e planos de composição de textos. O terceiro elemento constitui o processo de escrita propriamente, especificamente os processos de planejamento, escrita e revisão, que se mantêm sob o controle de um monitor (o próprio escritor monitora a sua escrita com base na situação retórica e nos seus objetivos).
Dessa forma, o processo de escrita constitui um conjunto de processos de pensamento distintos que os escritores orquestram e organizam durante o ato de composição, com o intuito de dar forma escrita ao texto para atingir seus objetivos. E enquanto planejam, escrevem e revisam o produzido, os escritores retomam o tempo todo o contexto de produção e a  memória. O processo de produção de texto de um indivíduo pode ser tão singular que funciona como uma marca pessoal, uma “assinatura de escrita”.


 

Um teto todo seu[2]
Virginia Woolf

   Mas, dirão vocês, nós lhe pedimos que falasse sobre as mulheres e a ficção — o que tem isso a ver com um teto todo seu? Vou tentar explicar. Quando vocês me pediram que falasse sobre as mulheres e a ficção, sentei-me à margem de um rio e comecei a pensar sobre o sentido dessas palavras. […] O título "As mulheres e a ficção" poderia significar — e talvez vocês assim o quisessem — a mulher e como ela é; ou poderia significar a mulher e a ficção que ela escreve; ou poderia significar a mulher e a ficção escrita sobre ela; ou talvez quisesse dizer que, de algum modo, todos os três estão inevitavelmente associados, e vocês desejariam que eu os examinasse sob esse ângulo. No entanto, quando comecei a ponderar sobre esta última forma de abordar o assunto, que parecia a mais interessante, logo percebi que havia um inconveniente fatal. Eu jamais conseguiria chegar a uma conclusão. Jamais conseguiria cumprir o que é, segundo entendo, o primeiro dever de um conferencista: estender-lhes, após uma hora de exposição, uma pepita de pura verdade para que a guardem entre as páginas de seus cadernos de notas e sempre a conservem sobre o consolo da lareira. Tudo o que poderia fazer seria oferecer-lhes uma opinião acerca de um aspecto insignificante: a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção; e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção. Esquivei-me ao dever de chegar a uma conclusão sobre essas duas questões — a mulher e a ficção, no que me diz respeito, permanecem como problemas não solucionados. Mas, para compensar um pouco, vou fazer o possível para mostrar-lhes como cheguei a esse conceito do teto e do dinheiro. Vou expor diante de todos, tão livre e integralmente quanto puder, o encadeamento de ideias que me levou a pensar nisso. Talvez, se eu revelar as concepções e preconceitos que estão por trás dessa afirmação, vocês descubram que eles têm alguma relação com as mulheres e outro tanto com a ficção. De qualquer modo, quando um tema é altamente controvertido — e assim é qualquer questão sobre o sexo —, não se pode pretender dizer a verdade. Pode-se apenas mostrar como se chegou a qualquer opinião que de fato se tenha. Pode-se apenas dar à plateia a oportunidade de tirar as próprias conclusões, enquanto observa as limitações, os preconceitos e as idiossincrasias do orador. É provável que a ficção contenha aqui mais veracidade que fatos. Portanto, valendo-me de todas as liberdades e licenças de um romancista, proponho contar-lhes a história dos dois dias que antecederam minha vinda aqui — o modo como, vergada sob o peso do tema que vocês depositaram em meus ombros, ponderei sobre ele deixando-o entrar em minha vida cotidiana e dela sair. Não preciso dizer que o que estou prestes a descrever não tem existência: Oxbridge é uma invenção, assim como Fernham; "eu" é apenas um termo conveniente para alguém desprovido de existência real. Mentiras fluirão de meus lábios, mas talvez possa haver alguma verdade no meio delas; cabe a vocês buscar essa verdade e decidir se vale a pena conservar algo dela. Caso contrário, naturalmente jogarão tudo na cesta de papéis e esquecerão o assunto.
   Assim, ali estava eu (chamem-me Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael ou o nome que lhes aprouver — isso não tem a menor importância), sentada à margem de um rio há uma ou duas semanas, gozando a amena temperatura de outubro, perdida em cogitações. Aquela canga de que falei — as mulheres e a ficção, a necessidade de se chegar a alguma conclusão sobre um tema que suscita toda sorte de preconceitos e paixões — vergava-me a cabeça até o solo. Para a direita e para a esquerda, tufos de plantas, dourados e rubros, resplandeciam, ígneos; parecia mesmo que tinham sido queimados pelo calor. Na margem oposta, os salgueiros choravam o lamento eterno, com os cabelos a envolver-lhes os ombros. O rio refletia o que bem quisesse de céu e ponte e árvore flamejante, e, quando o universitário atravessou, remando, os reflexos, eles se extinguiram novamente, como se ele jamais tivesse existido. Qualquer um podia sentar-se ali horas a fio, imerso em pensamentos. O pensamento — para chamá-lo por um nome mais imponente que o merecido — havia lançado sua linha na correnteza. Minuto após minuto, ela oscilou aqui e ali entre os reflexos e as ervas silvestres, ao sabor da água, que a erguia e a afundava, até (vocês conhecem aquele puxãozinho) sentir a súbita consolidação de uma ideia na ponta da linha: então, foi só puxá-la com cautela e expô-la cuidadosamente. Mas, ai de mim! Estendida na grama, quão insignificante me pareceu — o tipo de peixe que o bom pescador devolve à água para que possa engordar e merecer, um dia, ser preparado e comido. Não os incomodarei agora com esse pensamento, muito embora, se atentarem bem, talvez o descubram por si mesmos no transcorrer do que vou falar.
   Por menor que fosse, porém, ele tinha, ainda assim, a misteriosa propriedade dos de sua espécie — devolvido à mente, logo se tornou muito excitador e importante, e, enquanto ele arremetia e mergulhava, movendo-se como um relâmpago de um lado para outro, desencadeou uma tal marulhada e tumulto de ideias, que foi impossível para mim permanecer calmamente sentada.





A lebre e a tartaruga[3]

Sequência narrativa
Fábula: A lebre e a tartaruga
1 fase de situação inicial (de exposição, ou de orientação), na qual um "estado de coisas" é apresentado, estado esse que pode ser considerado "equilibrado", não em si mesmo, mas na medida em que a sequência da história vai nele introduzir uma perturbação
Um dia uma tartaruga começou a contar vantagem dizendo que corria muito depressa, que a lebre era muito mole e, enquanto falava, a tartaruga ria e ria da lebre.
2 fase de complicação (de desencadeamento, de transformação), que introduz a perturbação e cria uma tensão
Mas a lebre ficou mesmo impressionada foi quando a tartaruga resolveu apostar uma corrida com ela.
"Deve ser só de brincadeira!", pensou a lebre.
3 fase de ações, que reúne os acontecimentos desencadeados pela perturbação
A raposa era o juiz e recebia as apostas. A corrida começou e, na mesma hora, claro, a lebre passou à frente da tartaruga. O dia estava quente, por isso lá pelo meio do caminho a lebre teve a ideia de brincar um pouco. Depois de brincar, resolveu tirar uma soneca à sombra fresquinha de uma árvore.
"Se por acaso a tartaruga me passar, é só correr um pouco e fico na frente de novo", pensou.
4 fase de resolução (de re-transformação), na qual se introduz os acontecimentos que levam a uma redução efetiva da tensão
A lebre achava que não ia perder aquela corrida de jeito nenhum. Enquanto isso, lá vinha a tartaruga com seu jeitão, arrastando os pés, sempre na mesma velocidade, sem descansar nem uma vez, só pensando na chegada. Ora, a lebre dormiu tanto que esqueceu de prestar atenção na tartaruga.
5 fase de situação final, que explicita o novo estado de equilíbrio obtido por essa resolução
Quando ela acordou, cadê a tartaruga? Bem que a lebre se levantou e saiu zunindo, mas nem adiantava! De longe ela viu a tartaruga esperando por ela na linha de chegada.
6 fase de moral, em que se explicita a significação global atribuída à história, aparecendo geralmente no início ou no fim da sequência
Devagar e sempre se chega na frente.




Reescrita da fábula “A lebre e a tartaruga”
Estudante do Fundamental 1 de escola pública de São Paulo

Situação inicial: “A lebre era muito corajosa e rápida e a tartaruga era muito medrosa e devagar.” Bruno, 2º ano, ciclo 1, novembro/2005.

O texto de Bruno foi o único dos vinte e quatro textos a tentar transformar o conteúdo da fábula. O estudante escreveu outra história a partir da situação inicial:

Sequência narrativa
Reescrita de Bruno
1 fase de situação inicial (de exposição, ou de orientação), na qual um "estado de coisas" é apresentado, estado esse que pode ser considerado "equilibrado", não em si mesmo, mas na medida em que a sequência da história vai nele introduzir uma perturbação
A lebre era muito corajosa e rápida e a tartaruga era medrosa e devagar.
2 fase de complicação (de desencadeamento, de transformação), que introduz a perturbação e cria uma tensão
Um dia elas estavam passeando e viram uma caverna. A lebre falou:
--  Vamos entrar?
E a tartaruga disse:
--  Não.
Aí a lebre entrou. Aí a tartaruga disse:
-- Eu vou entrar.
3 fase de ações, que reúne os acontecimentos desencadeados pela perturbação
Aí, as duas entraram. Elas pularam, elas pularam, elas [pularam] tão alto que caíram dentro de uma  (...). Elas nadaram muito (...)
4 fase de resolução (de re-transformação), na qual se introduz os acontecimentos que levam a uma redução efetiva da tensão

5 fase de situação final, que explicita o novo estado de equilíbrio obtido por essa resolução
(...) muito que elas nadaram e a tartaruga (...) e afundou.
6 fase de moral, em que se explicita a significação global atribuída à história, aparecendo geralmente no início ou no fim da sequência


Para o professor analisar essa produção e realizar um diagnóstico do que Bruno necessita aprender, é imprescindível o conhecimento do contexto dessa produção: indagar como o estudante representou o problema retórico  e quais objetivos formulou para resolvê-lo, uma vez que a produção do estudante surpreendeu porque fugiu das expectativas da tarefa proposta (a reprodução da fábula).
A distância entre o texto de referência e o produzido pelo aluno deu-se em diversos planos:
·         na representação gráfica do texto (domínio do sistema de escrita): não houve uso de parágrafo, pontuação e título, apresenta dificuldades de fragmentação de palavras e de ortografia;
·         na representação do conteúdo: alterou a história, ações, locações;
·         na representação do texto: a sequência que organiza o gênero (estrutura composicional da fábula) está pouco organizada e pouco desenvolvida.
É possível que o estudante tivesse planejado dar uma boa resposta ao problema retórico, mas a dificuldade gerada pelas referências vagas que pareceu ter do gênero e do sistema de escrita talvez o tenham impedido de atingir seus objetivos. Nesse caso, uma atividade de narração oral da história seguida de uma entrevista pudesse revelar mais ao professor sobre como ele planejou a reescrita e a representação que fez para o problema retórico e os objetivos que formulou. Assim, o professor poderia observar com mais clareza a relação entre o que o estudante planejou e seu desempenho escrito. E poderia também estabelecer objetivos de ensino centrados nas necessidades de Bruno. Observando os desempenhos dos estudantes de sua turma o professor poderia compreender o que representa necessidade de aprendizagem do grupo e o que diz respeito especificamente a Bruno para melhorar seu desempenho e desenvolver suas habilidades de escrita de narrativas como essa.
Por isso, observando apenas o produto final, não podemos senão levantar hipóteses sobre o ocorrido: o estudante não reteve em sua memória a fábula original, portanto não foi capaz de recuperá-la; ou não compreendeu a tarefa; ou teve a real intenção de não cumpri-la. De qualquer modo, Bruno está em fase inicial de aquisição da escrita e ainda se esforça bastante na representação gráfica das palavras, e mesmo que tivesse a intenção de recriar a fábula com outra orientação semântica, não dispunha de tecnologia para esse registro.




[1] FLOWER, L.; HAYES, J. R.   A Cognitive Process Theory of Writing.  College Composition and Communication, USA, v. 32, n. 4. p. 365-387, dez. 1981.
[2] WOOLF, V. Um Teto Todo Seu (1928). São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 7-10.
[3] ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997.

3 comentários:

  1. Esta aula me lembrou um texto do Graciliano Ramos que li outro dia...

    As lavadeiras de Alagoas e a palavra

    “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
    Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”

    (Graciliano Ramos)

    Vocês não concordam?
    Solange Costa

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    1. De fato, Solange, o trabalho das lavadeiras descrito por Graciliano traduz concretamente a dinâmica do processo de escrita. Boa lembrança.

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    2. Solange, como não concordar com as lições desse grande mestre da palavra que foi Graciliano? Boa lembrança!

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